Breves
apontamentos sobre a responsabilidade penal dos sócios e administradores de
empresas
Leônidas
Ribeiro Scholz
CONTINUAÇÃO
Em primoroso voto sobre o tema, pontuou o então
ministro do STF Cezar Peluso:
"Como é vistoso, não se atribui aí, a
esse nem àquele, nenhum comportamento criminal. O que esse fecho da
inicial imputa aos denunciados é só a responsabilidade pela administração
da empresa, não a prática, sequer no exercício da mesma
administração, de algum particular comportamento típico. Ser
administrador de empresa não é por si só, escusaria dizê-lo, coisa
criminosa, de modo que, porque o fossem em certas circunstâncias, deveriam
ter sido descritas na denúncia, de forma minudente, ações e/ou
omissões mediante as quais cada administrador teria, nessa condição,
infringido ambas aquelas normas. A denúncia diz apenas: "Assim
agindo..." Assim como?
Cumpria, pois, estivessem descritas, com todas
as suas circunstâncias, as eventuais ações ou omissões que, praticadas,
pessoal, consciente e finalisticamente, pelo primeiro réu, na específica
qualidade de administrador das empresas, se amoldariam aos tipos
penais. Ou, de forma mais descongestionada, cumpria à denúncia responder
à seguinte questão: "o que fez ou deixou de fazer ...
"??
(...)
A responsabilidade pessoal postulada por
nosso sistema jurídico-penal significa que só se caracteriza
essa forma agravada de responsabilidade diante da existência de determinado
fato imputável a uma pessoa física, a título de dolo ou culpa. Ou
seja, tal responsabilidade pressupõe nexo psíquico que ligue o fato ao seu
autor:
(...)
Ao desatender ao ônus de atribuir ao
ora paciente ato ou atos concretos que teriam de algum modo concorrido
para a realização dos fatos criminosos, era inevitável fosse o
órgão acusador obrigado a atribuir os mesmos fatos ao ora
paciente a título de responsabilidade objetiva.
Deveras, à medida que a denúncia não atribui
ao ora paciente contribuição pessoal para a prática dos fatos
supostamente criminosos ali narrados, só se pode concluir que a atribuição,
ou seja, o enlace entre o fato e o agente, é de natureza objetiva
e, como tal, frontalmente contrário ao nosso sistema jurídico-penal
positivo, formado, neste ponto, pelas normas insertas no art. 5º, incs. XLV e
XLVI, da CF, nos arts. 13, 18, 20 e 26 do CP e, quanto aos crimes contra o
sistema financeiro nacional, no art. 25 da lei 7.492/86.
O caso põe em expressiva evidência a instrumentalidade
do processo penal relativamente ao direito penal material: a
responsabilidade pessoal e subjetiva postula denúncia
que atribua a autor determinado a prática de atos concretos
como obras suas, por aderência psicológica (dolosa ou culposa).
(...)
Peço vênia para prestigiar entendimento já adotado
desta Corte, verbis:
"HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL.
TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA GENÉRICA. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. INÉPCIA.
Nos crimes contra a ordem tributária a ação penal é
pública. Quando se trata de crime societário, a denúncia não
pode ser genérica. Ela deve estabelecer o vínculo do
administrador ao ato ilícito que lhe está sendo imputado. É necessário
que descreva, de forma direta e objetiva, a ação ou omissão
do paciente. Do contrário, ofende os requisitos do CPP, art. 41 e os Tratados
Internacionais sobre o tema. Igualmente, os princípios constitucionais da ampla
defesa e do contraditório. Denúncia que imputa co-responsabilidade e não
descreve a responsabilidade de cada agente, é inepta. O princípio da
responsabilidade penal adotado pelo sistema brasileiro é o pessoal (subjetivo).
A autorização pretoriana de denúncia genérica para os crimes de autoria
coletiva não pode servir de escudo retórico para a não descrição
mínima da participação de cada agente na conduta delitiva. Uma coisa é a
desnecessidade de pormenorizar. Outra, é a ausência
absoluta de vínculo do fato descrito com a pessoa do denunciado. Habeas
deferido" (HC n.º 80.549, 2ª Turma, rel. Min. NELSON JOBIM,
vu, j. 20.03.2001. Grifos nossos. No mesmo sentido, HC n.º 79.399, rel.
Min. NELSON JOBIM, j. 26.10.1999)."12
Em suma, pois, responsabilização penal de
quem quer que seja, bem ao reverso de poder assentar-se na
condição de sócio, administrador, gestor, gerente ou qualquer outra,
inapelavelmente exige ação ou omissão individual
(esta, contudo, somente se penalmente relevante – art. 13, § 2º, do CP) concreta
e especificamente vinculada, tanto no plano material, como no
psicológico (consciência e vontade) ao fato tido por delituoso.
4. O suposto alargamento da responsabilidade penal
pela distorcida concepção da teoria do domínio do fato
Sob o título "Jurisprudência do mensalão
deixa bancos e empresas apreensivos", divulgou o Valor Econômico
matéria a teor da qual " (...) Qualquer executivo, a partir do mensalão,
vai estar muito mais preocupado em assinar qualquer liberação de recursos para
evitar o que aconteceu no caso do Banco do Brasil e do Banco Rural",
afirma o gerente regional de compliance e segurança corporativa de uma
multinacional presente em mais de 70 países, inclusive no Brasil. (...) Entre
as novidades geradas a partir do confronto de posições dos ministros do
Supremo, uma das mais eloquentes e preocupantes, segundo as fontes ouvidas
pelo Valor, é a chamada teoria do domínio do fato. Usada pela primeira
vez pela Corte para basear uma condenação criminal, ela permite que se atribua
responsabilidade penal a quem pertence a um grupo criminoso, mas não praticou
diretamente o delito porque ocupava posição hierárquica de comando. (...) O
temor de advogados e empresários é o de que a teoria passe a motivar
uma série de processos por crimes econômicos que coloquem, entre os réus,
executivos e administradores de empresas pelo simples fato de que, em posição
hierárquica superior, eles teriam, necessariamente, o domínio do fato - ou
seja, saberiam de atividades ilícitas cometidas por seus subordinados. Esse
receio foi externado durante o próprio julgamento pelo ministro revisor do
processo, Ricardo Lewandowski. "Preocupa-me como os 14 mil juízes
brasileiros vão aplicar essa teoria se essa Corte não der parâmetros para sua
aplicação", disse. "Amanhã talvez o presidente da Petrobras possa ser
responsabilizado por um vazamento de petróleo porque tem o domínio do
fato."13
De fato e como anotei em breve ensaio sobre "o
farto e variado mosaico de posturas e intelecções jurídicas, novas ou
remodeladas, quando não também – pelo menos algumas – antinômicas entre
si", produzido no supracitado julgamento, proclamou-se "responsabilidade
penal por autoria intelectual à base da elastecida concepção
de que a teoria do domínio do fato – germinada por Welzel em 1939 e
aperfeiçoada por Roxin em 1963 – dispensaria conduta pessoal concreta
e conscientemente conectada à realização do ilícito, contentando-se
com a simples proeminência funcional ou ascendência hierárquica
sobre os respectivos autores materiais."
Na sequência, porém, averbei: Emblemático viés
"contemporâneo" do "direito penal de autor":
"Fácil será, portanto, apontar, na história, períodos em que se pretendeu,
por motivos religiosos ou por razões de Estado, fundar a pena criminal não
naquilo que o "agente faz", mas no que "ele
é" (...)" (Francisco de Assis Toledo. Princípios básicos
de direito penal. 3ª ed. SP: Saraiva, 1987, p. 224). Ou seja: responsabilidade
penal objetiva. E, mais, na contramão de taxativo
pressuposto da própria teoria de Roxin: "(...) a posição de
domínio somente pode ser concebível com a intervenção
da consciência e vontade do agente. Não podendo, assim,
haver domínio do fato sem dolo, compreendido como conhecer e querer os
elementos objetivos que compõem o tipo legal" ("Só há domínio
final do fato se houver dolo", Leonardo Issac Yarochewsky, com
respaldo em magistério de Nilo Batista. Conjur, Artigos, 25/9/12)"14
A valer e como judiciosamente observou Fernanda
Tórtima em alentadas reflexões sobre a matéria ("Poder mandar não
significa mandei. A teoria do domínio do fato serve à distinção entre
autor e partícipe de um crime, não para se comprovar a participação de
um acusado"15):
Recentemente, o professor emérito da Universidade
de Munique Claus Roxin, o grande especialista na teoria do domínio do
fato, citada no julgamento da AP 470, concedeu algumas poucas
entrevistas a respeito da teoria em questão, publicadas em periódicos
brasileiros. Foi o suficiente para que se passasse a insinuar que o eminente
jurista teria censurado nosso STF.
Nada menos verdadeiro. Pensar que Roxin teria criticado
diretamente os votos proferidos durante o citado julgamento é, no mínimo,
pueril. E divulgar essa ideia é leviano. É evidente que, apesar de nos ter
brindado com uma breve visita ao RJ, para evento acadêmico, no final do mês de
outubro, não teve oportunidade de ouvir, a respeito do processo, mais do que
algumas explicações superficiais. Suas manifestações limitaram-se à reprodução,
em caráter abstrato, de ideias que já vinham sendo por ele divulgadas há
aproximadamente cinco décadas em diversas publicações científicas.
Por outro lado, as entrevistas por ele gentilmente
concedidas, se observadas corretamente, como fonte de doutrina, fazem ver que a
teoria do domínio do fato parece ter sido utilizada equivocadamente durante o
julgamento da AP 470.
A bem da verdade, não é tarefa fácil compreender a
forma como a teoria em questão serviu ao resultado condenatório. Falou-se, de
forma descontextualizada, a respeito de domínio "final" ou
"funcional" do fato; chegou-se a invocar a formulação dos aparelhos
organizados de poder e, ao que parece, pretendeu-se inserir os enunciados da
teoria na análise da prova dos autos, a ponto de se fazer crer que a
identificação da posição hierárquica de alguns acusados dentro da estrutura de
poder poderia contribuir para a presunção de que teriam eles participado de
determinadas condutas criminosas. Em outras palavras, passou-se a
impressão de que a mera circunstância de alguém ocupar elevada posição
hierárquica fundamentaria a responsabilidade pela prática do crime.
Essa utilização da teoria do domínio do fato seria absolutamente
incorreta. Não
se pode, de forma alguma, mesclar suas premissas com a análise da prova de que
alguém tenha concorrido para a realização de um crime. A teoria do
domínio do fato serve exclusivamente à distinção entre autores e
partícipes de um crime, após ter sido devidamente demonstrado
terem os acusados concorrido para sua realização. A tese não é complexa:
uma vez comprovado - e somente após isso - que determinado acusado contribuiu
para a prática criminosa, verifica-se se ele o fez dominando os fatos. Em caso
positivo, atuou ele como autor; caso contrário, como simples partícipe
(mandante, isto é, instigador, ou cúmplice).
(...)
Mas o que não se pode conceber é que a teoria do
domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi
desenvolvida. E ela não foi criada para fins de comprovação de que
determinado acusado tenha participado de condutas criminosas.
Também se fez menção, em passagens do julgamento da
AP 470, à formulação relativa aos aparelhos organizados de poder, desenvolvida
por Roxin no âmbito da teoria do domínio do fato. A formulação fora corretamente
utilizada no julgamento do ex-presidente Alberto Fujimori pela Corte Suprema
peruana. Lá não se mesclou o uso da teoria com a análise da prova
dos autos, apenas condenou-se Fujimori como autor, e não mero partícipe,
considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de
poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias
mãos (imediatos). Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido
absolvido, mas condenado como partícipe.
Aqui, ao contrário, passou-se ao menos a impressão
de que o decreto condenatório de determinados acusados - e não apenas a
designação deles como autores ou partícipes - decorreu da aplicação da teoria
do domínio do fato, o que, como se viu, importa em incontornável equívoco.
A teoria do domínio do fato ainda é pouco utilizada
em julgados brasileiros. Não se pode deixar de lamentar que aparentemente se
tenha recorrido ao seu uso de forma equivocada em um julgamento de tamanha
repercussão. A preocupação não é apenas com as consequências do erro no
caso de que estamos falando, mas sim com sua reprodução, possivelmente também
errônea, em milhares de decisões judiciais a serem proferidas no país. A
teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da AP 470 ares de novidade.
A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por
uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir
de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A
culpa passa a ser da "nova" teoria, como se ela não existisse antes,
e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.
Logo, a atualmente tão decantada teoria do
domínio do fato, uma vez depuradas as distorções
jurídicas e as impropriedades técnicas que permearam sua utilização
em sobredito julgamento e, assim, restabelecido seu real alcance,
em nada e por nada atenua os requisitos
da responsabilidade penal: conduta pessoal concreta e conscientemente
conectada à realização do ilícito, seja ele qual for.
_______
1 Ressalte-se, por relevante: nos
delitos culposos, necessariamente materiais, o “querer” restringe-se à conduta,
a qual, voluntariamente realizada, mas com infração do(s) respectivo(s)
dever(es) de cuidado, dá causa, sem intenção, portanto, ao resultado tipificado
como infração penal.
2 Código penal interpretado.
Organizador: COSTA MACHADO. Coordenador: DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO. São Paulo:
Editora Manole, 2011, p. 33. Realces gráficos pela transcrição.
3 Comentários ao código penal. São
Paulo: Saraiva, 1986, v.1 – parte geral. p. 34
4 Capítulos de direito penal:
parte geral: com observações à nova parte geral do Código penal. São Paulo:
Saraiva, 1985. pg. 34.
5 “Quem, de qualquer forma,
concorre para a prática dos crimes previstas nesta Lei, incide nas penas a
estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o
administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o
preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de
outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”
6 “São penalmente responsáveis,
nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição
financeira, assim considerados os diretores, gerentes.”
7 Artigo 13 do Código Penal.
8 Código penal e sua interpretação
jurisprudencial. 8ª ed. São Paulo: RT, 2007. Página 44. Nossos os realces
gráficos.
9 “Duas formas de ciência da
acusação, premissa para o pleno exercício do direito de defesa: acusação
formal, certa e definida e acesso aos autos do inquérito policial”. In: Crimes
econômicos e processo penal. série GV law. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 267
10 RHC 2.882/MS, 6ª T., Rel. Min.
LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, j. 17.08.1993, DJ. 13.09.1993.
11 HC 15.051/SP, 6ª T., Rel. Min.
HAMILTON CARVALHIDO, j. 06.03.2001, DJ. 13.08.2001.
12 HC 83.301-2/RS (DJ 06/08/2004).
Páginas 04 e 09/12. Destaques gráficos: alguns no original, outros apostos pela
transcrição.
13 Matéria integralmente reproduzida
no Clipping Eletrônico da AASP (ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO) de
12/11/2012.
14 “Palavra pela ordem não serve só
para questão fática”. Artigo publicado na Revista Eletrônica, Conjur,
16/10/2012.
15 In: O Estado de São Paulo –
Notícias – 18 de novembro de 2012.
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Leônidas Ribeiro Scholz é advogado do escritório Advocacia Criminal Leônidas
Scholz.
FINAL
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